Diante do caderno
Há tempos não pegava no papel. Sentia falta daquela sensação de descortinar-se para si mesma, lembrar-se que era uma estranha. As linhas retas do caderno destoavam das surpresas que as palavras ali colocadas insistiam em fazer emergir. Supunha que as palavras, as ideias emergiam, como se ela fosse um lago fundo no qual plantas e pequenos bichos flutuavam na superfície, mas restassem amarrados em pedras pesadas outros seres. Habitantes das profundezas. Pensou um pouco sobre ser uma mulher-lago. Questionou-se se em suas águas – entre a superfície e as profundezas – poderiam sobreviver peixes. Riu da imagem. Ela invadida por peixinhos dourados, carpas, pirarucus. Depois, deu-se conta que era uma forma poética de se perguntar sobre sua própria fertilidade. Uma fertilidade que não falava do útero, da geração de filhos, mas da sua capacidade de manter a vida pulsando em si. Só ela sabia dos dias em que quis acabar com tudo. Nestes, ela era deserto, pura aridez a derreter impiedosamente qualquer sinal de vivacidade. Encarou, mais uma vez, o caderno. Quase instintivamente, passou o dedão na borda das páginas para que pudesse sentir seu cheiro, sua materialidade. O vento leve que o mexer das folhas gerou funcionou como um antídoto contra suas memórias ressequidas. Mesmo os pensamentos mais abismais soltos, como que por mágica, pelo encontro da caneta com o papel não eram capazes de matá-la. Vinham à tona já purgados, como se os afetos nefastos de outrora fossem só uma cicatriz a marcar o que já não existe. Cogitou se os escritores profissionais sentiam seu trabalho como terapia ou se isso era privilégio dos amadores. Imaginou-se escrevendo dia e noite sem parar. Produzindo livros de duas mil páginas. Trinta segundos depois, um gosto amargo de que era incompetente tomou-lhe a boca. Talvez os livros e suas milhares de páginas não fossem dados às mulheres-lago. Quiçá, os grandes escritores fossem mares abrigando em suas entranhas baleias, golfinhos e lulas-gigantes. Desanimou. Nunca teria água o suficiente para ir além de seus contos bobos. Antes de fechar o caderno, porém, um lampejo: Quem sabe, alguns lagos, assim como ocorre com os rios, pudessem se fundir com o mar?! Empunhou a caneta e se pôs a revirar suas pedras fundas na esperança de, no rebuliço de seus líquidos enlameados, achar um canal secreto que a levasse aos oceanos.
Como é bom te ler outra vez! Amei o texto, encantada com ideia de uma mulher povoada de peixes ou lulas gigantes, com essa fertilidade generosa e criativa. Esses caminhos de águas e vidas...
ResponderExcluirTia, tava com tanta saudade de escrever que inventei um tempo. 🌼
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