Herança
Herdara as orelhas do avô. Grandes, foram motivo de chacota dos colegas durante toda a infância. Eram, de fato, de abano. Se seu rosto fosse um pouco mais arredondado e o nariz maior, seria justo o apelido de dumbo. Houve um tempo em que pensou em cortar, passar uma faca cirúrgica e torná-las mais agradáveis à vista. Neste tempo, não tinha dinheiro e preferiu não se endividar. Era, afinal, uma pessoa prática. Calculista, até.
Com a adultez, a preocupação com a aparência foi cedendo lugar a coisas mais objetivamente urgentes. Conseguir emprego. Pagar contas. Atender as demandas desumanas do dia-a-dia. De certo modo, esqueceu-se das orelhas. Efetivamente, esqueceu-se do corpo como sua casa originária. Ou, quem sabe, nunca tivesse se atentado para isso. Era possível que, naquele domingo cinzento e que convidava a dormir, ele estivesse se vendo pela primeira vez.
Encontrado no espelho, admirava pensativamente os detalhes do rosto. As orelhas do avô materno eram tão suas e tão alheias. Ele todo era uma singularidade estranhada e íntima. Um quebra-cabeça de peças ancestrais. A conexão com passados remotos e inimagináveis presentificada na carne, nos ossos, nos genes mais recônditos. Era todo ele uma herança ambulante.
De seu avô, lembrava pouco. Um homem austero, de riso difícil e fala eloquente. Um homem que, apesar da natureza ter lhe provido ouvidos tão agigantados, não sabia ouvir. Talvez, ele também não soubesse ouvir. Ouvir é curvar-se ao que não se sabe e ele gostava de achar que sabia.
Lembrou da avó. Seus olhos baixos, seu corpo magro e ágil correndo com todas as atividades da casa. Sentiu o cheiro do feijão e do perfume dela, como se ela estivesse ao seu lado. A vó tinha voz doce e falava quase sussurrando. Sua mente invadida por uma canção de ninar cuja letra se fragmentava em pedaços desarmônicos na memória do homem de 54 anos que ele era agora.
De olhos fixados no espelho, buscou em si as heranças da avó. Quis se convencer de que seus cabelos negros, grossos e volumosos, fossem dela. Sabia, contudo, que poderiam muito bem ter vindo do lado paterno. Segui contemplando sua imagem a procura de uma característica indiscutivelmente advinda da avó Lucinda. Percebeu, menos com a vista e mais com a intuição, de que da avó herdara as rugas. Aquelas peles flácidas nos cantos dos olhos e no franzir da testa a dobrar-se para aguentar o peso da gravidade: de tudo que há de grave na vida, no mundo. Ele, como ela, tantas vezes calava, dava ré, investia suas energias para encontrar pequenas brechas ao invés de bater de frente com aqueles que guardavam as portas e acessos amplos. Ele, como ela, concentrava-se nas tarefas cotidianas, atribuindo-lhes um sentido conscientemente inventado, mas que nem por isso deixam de ser gotas a pingar em seus lábios sedentos de viver.
Antes de se afastar da farmacinha espelhada do banheiro para ir fazer seu café, reparou novamente nas orelhas enormes. Balançou negativamente a cabeça, ao notar que, como o avô, tinha dificuldades de ouvir sua avó, ela que sempre o habitará. Acolheu sua parte no testamento biológico do avô. Abraçou alegremente sua cota em seu espólio sentimental: a maior herança do avô, era seu imperfeito amor pela avó.
Herdar os afetos é das heranças mais complexas...
ResponderExcluirEstava com saudade de ler-te.
E eu andava com muita saudade de escrever aqui. Passei o dia perambulando pelo blog...
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