No intervalo do semáforo

 


Brincavam os homens, três, na diminuta praça

— um canteiro, sendo exata.

As barrigas cheias de fome, um vazio enorme e indecente,

As cabeças enevoadas com alguma fumaça, longe e alheios

Os corpos feios, sujos, fedidos e ágeis.

Um arremessava a bola

— igualmente rota e deformada

Outro defendia o arremesso

— qual um goleiro hábil numa trave real

E o terceiro pedia nos vidros fechados dos carros

— no intervalo do semáforo

Revezavam-se nas posições e riam

Era mais fácil rir àquela hora

Era possível se divertir à luz do dia.

Brincavam, os três homens,

Gargalhavam com a falta de dentes exposta,

com o oco da fome,

com uma sede infinita.

Àquela hora era possível.

À noite, não,

À noite os bichos saem dos bueiros,

dos carros escuros,

de dentro da gente.

À noite brigariam pelo papelão,

pelo lugar, pela cachaça.

À noite é mais fácil sangrar.

Por agora riam,

mas era triste.

 

Comentários

  1. Anônimo4/2/23

    Que texto dolorido! A arte contorna de beleza até as coisas mais terríveis.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)