O desejo de Deus

Deus não podia ficar contente com aquilo, certeza! A manhã de domingo perdida daquele jeito, o céu azulzinho, nenhuma nuvem, tão bonito! Não, definitivamente aquilo era à revelia de Deus.

Pensava isso com aflição, o olhar ansioso no vão da porta lateral, as mãos sob as coxas, as pernas balançando de leve. O cheiro da madeira dos bancos era bom, mas até dele enjoava. Devia dar um trabalhão tirar o pó de tudo aquilo. Inclinou um pouco a cabeça para enxergar alguma poeira pousada à contraluz, nada.

Quando era menor, achava que as paredes tinham sido pintadas com giz de cera, pelo menos era esse o efeito quando o usava no papel, tentou fazer em casa, deu tudo errado. A parede ficou bonita, mas a mãe não achou. Acabou de castigo. Agora sabe que é tinta, um processo que o tio explicou para o primo, num almoço qualquer, como era o nome?

Fazia muito calor, todos os ventiladores ligados, as mulheres se abanando com leques ou o folheto; a cada tanto uns homens enxugavam a testa com o lenço que tiravam do bolso; os coroinhas deviam estar derretendo sob a túnica, nunca seria coroinha; o padre, com a batina grossa, tinha um ventilador enorme virado pra ele, mas devia estar morrendo de calor também.

Levanta. Senta. Canta. Ajoelha. Levanta. Senta. Levanta.

Havia uma espécie de rodízio de netos, cada domingo era a vez de um acompanhar a avó à missa matinal, um suplício, todos concordavam, mas poucos admitiam em voz alta; pior, nenhum se rebelara, ao menos, que se tenha sabido. Entrara no rodízio esse ano, era a regra, um ano antes de começar o catecismo, obrigatório e indiscutível. Será que era pra acostumarem com essa tortura: um domingo lindo desperdiçado daquele jeito? Que dó.

Senta. Levanta. Ajoelha. Levanta. Senta.

Por muito tempo achou que os vitrais eram feitos com canetinha, mas não achou nenhuma que fixasse bem no vidro, saíam até com cuspe. Depois, desconfiou que fosse decalque, adesivo de plástico colorido, igual ao de encapar caderno. Ficou com vergonha de perguntar. Descobriu que era vidro colorido, por isso não podiam jogar bola daquele lado da praça, já pensou se quebrassem algum? O coração dava até uma acelerada só de pensar...

A fila enorme para comunhão não acabava mais, o desfile de rostos tristes, compungidos, sofredores, parecia que quanto pior, melhor. Nenhuma alegria, nenhum sorriso, todos deviam sentir alguma dor, alguma culpa, alguma vergonha. Não, Deus não podia estar nem um pouco contente com isso. O padre falava em júbilo, felicidade, amor, perdão, mas era tudo na Vida Eterna, só para depois da morte. Agora era só essa agonia, viver esperando morrer para, então, viver.

A garganta queimava de sede. Não queria ter ido, de jeito nenhum, a mãe ameaçou com tudo, o pai, resolveu. Chamou-o no quarto, foi já perdendo a coragem da rebeldia, deu-lhe umas moedas e disse que eram para comprar um picolé depois da missa, ou pipoca, mas tinha que almoçar e não era para contar; concordou com a cabeça. De vez em quando colocava a mão no bolso para conferir as moedas, chuparia um picolé de groselha, ou de uva.

Ajoelha. Senta. Pernas cansadas de tanto balançar, levantar, sentar e se controlar para não saírem correndo. Todos aqueles santos e anjos, as Nossa Senhoras, tanto Jesus... E a voz monótona do padre, e o amém a cada tanto... As pinturas da Via Sacra. Não acabava nunca! Era opressivo.

Levanta.

E que o Senhor vos acompanhe.

Deus não via a hora de acabar também. Não era possível que amasse seus filhos nesse sofrimento, uma manhã de domingo tão bonita, tão promissora de prazer, desperdiçada daquela maneira! Não. Talvez, o desejo de Deus fosse um grande piquenique, com a risada alegre de pessoas felizes. Ou só um passeio tranquilo, correr um pouco na grama e sentar à sombra depois.

A luz ofuscou um pouco seus olhos, o sol estava bem quente, por isso o sorveteiro fora embora, os picolés estavam derretendo no carrinho. Como a missa atrasou, o pipoqueiro também foi embora, ninguém comprava pipoca tão perto da hora do almoço. Sentiu vontade de chorar, que sede, que raiva!

Deus podia ter um senso de humor duvidoso, às vezes.

Comentários

  1. Sacanagem esse final.
    No mais, sou da religião dessa criança... Gosto de um Deus que deseja.

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