Carta para ti
Fortaleza, 28 de maio de 2023.
Amiga, daqui uns dias, fará um ano que te vi pela última vez. Eu não contabilizo o dia da dança funesta como tendo te visto. Aquele corpo esbranquiçado e imóvel, não era você. Mas, acho que você estava lá. Eu não te vi, porém. Acho que você estava. Na morte, tudo é um grande ‘acho’, não é?
No entanto, na despedida de teu corpo desabitado, aconteceram, paradoxalmente, coisas que guardo na caixa das belezas. Nunca aquele auditório comportou tantos tempos diferentes. Nunca ele foi lavado por tantas lágrimas e histórias. Espero que você tenha podido acompanhar - Um espírito é já um pouco de deus e fraciona-se conscientemente para habitar diversos lugares simultaneamente?! – as homenagens, mesmo gente que você desprezava te admirava. Os alunos – teus filhos extensionistas – estavam inconsoláveis. Penso que muitos ainda estão. Eu não fiquei inconsolável. Emoldurei nossas conversas nos tempos densos do hospital e nos momentos leves quando não nos cruzava a cabeça que o mundo ficaria sem ti. Estou convencida – pouco me importa se meu convencimento se sustenta na verdade – de que vivemos o que estava planejado.
Claro que não havia um plano rígido, mas assim como o começo, o final estava determinado. Quero crer que, neste caso, determinado e certo são sinônimos. Não há espaço em mim para duvidar, porque duvidar – como nós sabemos tão bem! – é corrosivo. No plano do fim, estávamos juntas. Talvez, tenhamos esse acordo milenar: nos esbarrarmos no meio e estarmos próximas no fim, lembrando uma a outra através da intuição, que nossas almas tem combinados pregressos.
Meu choro por ti é a conta-gotas. Derramo lágrimas murchas ao lado de estranhos no ônibus. Muitas garças são tu. Eu sei que você queria ser águia, é possível que seja. Mas, para mim, as garças é que te presentificam. As garças gostam d’água, pescam. Tua raiz indígena encontra nelas correspondência.
Vez ou outra, atribuo ideias esparsas a você me dizendo coisas, me adiantando pequenos futuros. O passado recente, futuro que teus olhos corporais não viram, trouxe novidades mais gentis. Espero que você tenha visto a festa da vitória do Lula. Outras coisas, eu espero que você não tenha visto, ou que tenha visto além do que vi e interpretei com(o) mesquinhez.
As coisas que você me pediu tenho cumprido com dificuldades. Uma delas, com certeza, deixei a desejar. Não sei como atender a contento. A outra tenho sido menos incompetente, embora duvide da eficácia do que faço. O fato, amiga, é que há coisas que não tem solução, porque elas não são ‘práticas’, e sim pessoais. Tua falta permanece e para alguns é difícil -compreensivelmente!! - concentrar as memórias no que foi vivido ao invés de lamentar o que não poderá vir a ser.
Não irei seguir te contando o que se passou neste quase um ano. Agarro-me na impressão – que não quero explicar, só sentir – de que você tem participado ativamente de tudo, que tem mexido os pauzinhos para encaminhar umas questões que andavam enroladas. Aqui, as coisas caminham com o ritmo próprio dessa dimensão, ora indo, ora voltando. Você segue nas nossas falas e em nossas vidas. Marcelo e eu, resolvemos publicamente reclamar que você tem faltado em certas ocasiões. Quando brincamos, tenho mais certeza que você está presente.
Eu fico por aqui, torcendo que hoje uma garça me surpreenda ou que eu receba outro sinal qualquer que você (Luna me interrompeu para que eu a alisasse, foi você que a mandou?) leu esta carta. Te amo. Até breve.
Oh, tia... Chorei contigo, um pouco só. É q está um dia lindo de céu azul sem nuvens, e a luz do sol entrar em tudo (e em mim) e eu sempre acho q ela está correndo livre num dia assim...
ResponderExcluirDeve estar correndo, tia. Céu azul, dia de sol é dia de Janaína. Comigo ela voa nas asas das garças, contigo ela corre nas matas
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