“Restaurador do tempo”
Os dias de outono têm uma luz que amansa o caos...
Olhou para o Waterbury de 1878 embalado no plástico bolha, negligenciado no correr da vida, que ironia, um relógio para o qual falta tempo!
Abriu-o sobre a mesa, o vidro intacto, a madeira judiada, com algumas lascas aparentes. Abriu a portinhola, a máquina quebrada, molas e engrenagens corroídas, os metais pedindo polimento, os algarismos sumindo. O tempo não poupa nada, pior ainda é o descuido. Conferiu as chaves de corda, a original, com a gravação bastante apagada de tanto uso e a reserva, destoante de tudo. “Precisa dar corda todos os dias na mesma hora”, lembrava do pai repetindo enquanto girava a chave com cuidado até a mola estar apertada. Depois a colocava no assoalho do relógio e fechava a portinhola de vidro, enquanto o pêndulo balançava monotonamente fazendo o compasso dos segundos, virando minutos até o badalar da hora.
O velho Waterbury não escondia o desmazelo de tantas mudanças. Em algum momento impreciso ele passou a ser só um objeto decorativo, “ah, precisa mandar arrumar a mola”, o que não aconteceu; “tem que ver quem conserta”, o que não se viu; depois, nem isso. “E o relógio?” “Não sei se vale à pena...”
Da parede para estante, depois para uma caixa e outra, algumas cidades, muitos caminhos, meio esquecido, virou herança em vida. Um ato simbólico, um não saber o que fazer, com o relógio, com o desconsolo, com a vida.
Os dias de outono têm uma cor que embala a memória...
“Tem que tirar o pêndulo quando for carregar, tem uma peça aqui que quebra fácil se ele travar.” “Ah, não sabia...” E o que mais? O não saber ou não lembrar se avolumou, vontade de perguntar de novo pro pai. Via-o falando, dando corda, ouvia o tic-tac, o carrilhão das horas, a presença modesta do Waterbury na parede da sala de estar, sobre a mesa de telefone, com a cadeira de estofado verde e o encosto de palhinha; lembrou que não precisava acender a luz quando se levantava à noite, para beber água, tudo estava perfeitamente no lugar e o relógio estava acordado, sempre estava, vigilante e pontual, a materialização do mundo presumido, era reconfortante.
“De três a quatro dias úteis para fazer o orçamento, é meu pai que faz a mão”. “Sem problemas”. “Ele faz o orçamento de cada parte separado, da madeira, da caixa, dos metais, da pintura e do todo”. “Entendi.” “Você sabe, às vezes a pessoa não quer fazer tudo.” “Sei como é.” “Ah, leva as chaves da corda, ficam com você.” “Não vai precisar?” “Não, meu pai tem todas, muitos anos de profissão.” “Claro.” “Olha, a original ainda tem a marcação do nome.” “É, mas tá sumindo...” “Tá.”
Os dias de outono têm um ritmo que desgoverna a gente...
Precisa dar corda todos os dias.
“Fica pra você, sempre gostou dele, talvez tenha conserto.” Fiquei, mesmo que o restaure e volte a funcionar, não tem conserto. Não precisa.
O Waterbury foi o único sobrevivente de toda uma era, uma casa toda —hoje eu sei.
Tia, vendo só agora!!!
ResponderExcluirAdorei. Tem um tanto do "cheiro" do livro ... As coisas que são a história, que trazem no seu bojo as pessoas e suas dores.