7 de setembro

Eles falaram que começaria às oito. Todo ano é isso. Estavam concentrados desde cedo e não tinham dado um passo sequer. Ainda bem que o sol não estava quente. Esse povo não vai parar de falar mais, não? Já foi a vez do prefeito, o presidente da câmara, gente sem cargo —apenas com a carga do nome, só faltou a tia da cantina! Pelamor de Deus, anda! Bem no feriado que a gente pode dormir mais... As sirenes dos carros de polícia, agora vai.

 

E se a fita do meu bambolê soltar? E se eu o deixar escapar? Para. Para de pensar nisso, vai dar tudo certo. Ai, essa meia de arrastão está esquisita, parece que está pegando. Será que o collant ficou transparente? Deveria existir sapatilha trinta e cinco e meio, essa tá apertada demais, a outra saindo do pé não ia dar certo. Esqueci do band-aid. Ficou bonito o bambolê prateado, quando bate o sol ele brilha, parece estrela girando no ar, não posso deixar cair. Acho que a meia rasga se eu esticar bem a ponta, ou enfia entre os dedos, credo. As meninas passaram gel, logo o coque delas desmancha, o meu não, esse truque da gelatina vai deixar tudo impecável, eu espero. Nossa, que demora! Ano que vem meu peito estará maior e aí quero ver se não vou com o pompom, igualzinha a líder de torcida do filme da sessão da tarde do outro dia. Até que enfim começou.

 

Com essa farda cheia de franjas douradas e esse chapéu ridículo nem pareço eu. Os mais altos vão nas pontas, mas eu troquei de lugar, bem no centro, quero ver meu irmão não me enxergar. Minha mão está suando na luva. Os meninos que ficam rindo de mim no futebol, falando que sou desajeitado, devem estar bestas com minha força, o bumbo não é tão pesado, mas essa correia incomoda um pouco o pescoço. A baqueta com a ponta azul é bem bonita. Ainda bem que saí das cornetas, pra isso o porte físico ajudou. Agora  também chamava os corneteiros de buldogues, por causa das bochechas enormes, cheias de ar, mas acho que ninguém nunca viu um buldogue de verdade, só na televisão e olha lá! Eles não cansam de falar? Estou derretendo. Hora de girar a baqueta, pausa longa, pé esquerdo e sai.

 

Pronto, o sol esquentou com força, que vontade de beber uma água fresquinha da bilha. Essa calça está roçando na coxa, perto da virilha, fica subindo. Será que ainda terá picolé quando o desfile acabar? Gente, que vontade de sair correndo. E se eu desmaiasse? Tombasse no chão com tudo, vinha resgate, ambulância com sirene, que vergonha! Iam falar disso o resto do ano. Melhor não. Mas que minha perna está mole, isso tá! Um braço de distância, e se o menino do bumbo errar a batida? E se o bambolê cair no meio da rua ou sair rolando? Nossa, não acontece nada e a gente nem vê os caras do Tiro de Guerra desfilando com arma e tudo. Será que demora? O escolhido para levar bandeira deve estar arrependido de ter aceitado. Tô com fome, com sede, com calor, com preguiça, e esse sapato começando a incomodar, por que não deixam usar tênis, meu deus!

 

Meu calcanhar tá me matando, deve estar em carne viva! Devia ter pegado a sapatilha maior, era só colocar algodão na ponta, agora é tarde Inês é morte e eu tô quase. Esse sol na cara atrapalha muito, só enxergo o brilho do bambolê, vou no rumo. Ainda bem que não caiu, o da menina da fileira de trás voou no meu coque, por sorte não desmanchou, quer dizer, por dois pacotes de gelatina sem sabor, né. Ano que vem eu não vou com pompom nem ferrando! Nem com bambolê, nem com nada. Se não tiver jeito venho de uniforme simples, nem uniforme de gala. Que coisa ridícula! Minha garganta tá seca, vontade de tomar um guaranazinho bem gelado. A fita tá começando a soltar, logo desenrola tudo. Pior pra quem leva o estandarte, deve dar até câimbra no braço ficar naquela posição. Isso não acaba mais nunca, senhor!

 

E se a cordinha da baqueta arrebenta e ela sai voando e acerta a cabeça de alguém? Ah, é cada coisa boba que a gente pensa. Será que o pai já me viu? Será que vai contar lá no bar, se gabar da força no bumbo? Se a baqueta soltar capaz que eu finjo estar passando mal. Esse apito está dando nos nervos, daqui a pouco confundo os comandos. A correia tá me matando, o pescoço tá até duro, a luva deve estar molhada. Esse calorão tá difícil, a sede tá arruinando minha concentração. Será que os meninos vão jogar bola à tarde? Tomara que sim, vou até no gol, se precisar. Esse bumbo tá desajeitado, uma dorzinha nas costas, era melhor na corneta, se bem que esses devem estar com a boca até pregando, sem água é fogo! Pra que tanta pompa, já deu, gente! Se bobear ainda pego o finzinho do desfile, vejo o carro dos bombeiros com luzes e sirene ligadas, mas acho que o canil já passou, estavam na frente. Paciência. Ruim mesmo deve ser carregar o pavilhão, coisa mais sem jeito de acomodar. Até que enfim o último quarteirão, se não fossem as franjas, ia molhar a cabeça na torneira, ah, tem o chapéu também, nada ajuda, só a emenda do feriado salva.

 

Comentários

  1. Fantástico, tia. Será que tudo que não se vê num desfile é o mais interessante do desfile?

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)