Em algum lugar do passado

 

A criança que eu fui quis se ver hoje.

Busquei as fotos, poucas. A maior parte ficou em alguma caixa de mudança, na casa de outro alguém, perdidas, dispersas, misturadas nos álbuns de outrem. O espólio das memórias é cruel em todo tempo.

Olho para a criança da foto, nenhuma referência de nome ou ano, no verso só a logomarca da Kodak. Devo ter uns dois anos e de mim reconheço apenas o sorriso largo.

Sei quem tirou o retrato, meu pai, na Yashica antiga, com a proteção de couro que se encaixava na lente. Sei porque hoje a câmera está largada em uma gaveta da minha casa, o couro desgastado, alguma coisa quebrada. Fiquei com a máquina, mas o que ela registrou se espalhou e algum dia alguém vai olhar e já não saber quem é, “alguma criança, não sei.” Não importa mais, quanto tenho deve bastar.

Estou impecável e a boneca desgrenhada em meu colo está com uma roupa de crochê feita pela minha avó, eu sei que a adorava só pelo jeito como a seguro. Tenho anéis e pulseiras, sou uma miniatura de adulto e de mim só reconheço a boca, infiro certa ironia no olhar, será? Pode ser. “Olhos sapecas”, ouvi uma vez, já os tive, perdi.

Duas lembranças me pegam desprevenida, as balas Soft lançadas sobre um Eixão de poucos veículos, como pequenos paraquedistas, que meu pai encostou o carro e desceu para pegar em um dia das crianças, seu sorriso com as mãos cheias e a recomendação que só podia depois do almoço. Aquelas balas caindo do céu e o salsichão do Fritz, na Asa Sul, são uma viva memória da criança de pé entre os bancos do carro.

Uns anos depois, outro dia das crianças, lembro da enorme decepção ao abrir o presente e ver uma Lu Patinadora, sim o brinquedo da moda, todas as meninas desejavam, mas eu queria só os patins. “Não gostou?” “Gostei”, liguei a boneca e a deixei andando de patins sozinha, morrendo de inveja, de raiva, de vontade chorar. As mil justificativas —é perigoso, tem que ficar segurando, você não sabe andar; e minha enorme vontade de gritar “e daí?”, viraram um dor de barriga que só passou depois de vomitar, “comeu muito doce, vai acabar diabética”. La, le, li, lo, Lu patinadora e meu desprezo nunca me deixaram aprender a andar de patins.

Guardo a foto, não vejo outras, não quero mais lembranças.

De relance olho para a criança que eu fui, “uma bonequinha”, alheia. Não a minha, descabelada e descalça. O sorriso largo, as mãos grandes e um jeito enviesado de existir.

Comentários

  1. Há outro jeito de existir que não seja enviesado ?

    ResponderExcluir
  2. Anônimo14/10/23

    Deve haver, tia...
    Sempre há outros jeitos.
    Mas eu desconheço.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)