Manifesto

 

Trânsito parado logo cedo.

Que dia lindo para estar presa aqui, dentro do carro, ar condicionado ligado e o rádio cantando “você não anda bem/precisa relaxar/precisa de uma praia/um pôr do sol na praia/um pôr do sol à beira-mar”.

Andou um pouquinho.

Esse céu azul é uma provocação, moça eu preciso de muito mais que ‘um pôr do sol na praia...’ Eu preciso, no mínimo, de um dia inteiro na Praia do Futuro, naquele mar aberto de Fortaleza. Chegar cedo, maré alta, mas secando, a faixa de areia aumentando, o povo jogando frescobol, futebol com gol de chinelo, vendedor ambulante, cerveja gelada e caranguejo, numa barraca com cadeiras condenadas e garçom que eu chame pelo nome.

O locutor fala sobre uma guerra longe, uma eleição longe, o carro sai do lugar.

Eu estou com os pés enfiados na areia e corro até o mar para um mergulho merecido, faz calor, mas tem brisa, esse vento de maresia que gruda no cabelo e na pele, salga a gente e traz o mar. Sinto a vertigem do recuo da onda com os pés fincados no chão, não caminho em linha reta quando saio da água. O mar ainda puxa muito e as piscinas começam a aparecer.

Alguém buzina e isso é irritante, pra quê? Vai, meu filho, sua pressa é maior que a dos outros, segue pelo acostamento, tomara que encontre a polícia rodoviária aí na frente.

É, moça, eu preciso relaxar... Ainda nem são nove horas. Volto para a Praia do Futuro, o dia inteiro lá, ver a maré secar e tornar a encher, subir devagar, engolir as piscinas, queimar o pé na areia pelando, pegar jacaré, tomar uns dois ou três caldos, ficar tonta de tanto mar, sentir moleza, a boca salgada, o olho ardendo, areia no biquini e continuar. Rir e bolar nas ondas que quebram mais fortes. A cabeça vazia, só o barulho do mar em mim.

O trânsito desperta ainda letárgico, aos poucos encontra um ritmo, lento.

É, moça, eu não ando bem, mas eu sei como me salvar... Dou um último mergulho na Praia do Futuro, a maré cheia me cospe. Escarrada pelo mar, cheia de areia no cabelo, procuro o homem que vende quebra-queixo, engano a fome enquanto deixo a praia para trás. Estou exausta e feliz, ninguém é triste quando passa o dia no mar.

 

Comentários

  1. Tia, vem!!! Quero muito esse dia (esses dias!) na praia. Merecemos (e, mesmo se não merecemos, fingimos merecer).

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  2. Anônimo24/10/23

    Já vejo nós três marejadas. Mar , arejadas de tanto abraço, ondas de abraçar!

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)