O museu de particularidades mínimas II

 

O semáforo abre, alguém buzina, os faróis pululam distorcidos pela água que cai. Nada há além de resignação. O rádio disputa com o movimento agitado da rua e a chuva. Nada há além de indulgente comiseração. Deseja chegar em casa e, embora não tenha as roupas molhadas, assim parece, quer banho quente, demorado, calmo. Quer tirar o sapato, que lhe pega no dedo mínimo; tirar a calça que começou a incomodar; a pele retraída, a contração na nuca.

Ela pensa em ser gentil com os pedestres de guarda-chuva, mais ainda com os desprevenidos encharcados, mas não o é. Tem pressa, pressa e vontade de chorar; pressa vontade de chorar e cansaço. Num lapso se vê pedestre, atravessando a avenida alagada, um pouco assustada, um tanto feliz, completamente presente... num tempo deslocado.

O escuro da casa é um convite sincero. Solta a bolsa na cadeira, tira os sapatos, deixa os ombros caírem depois de um suspiro muito fundo. Acende o abajur. A luz aconchegante a comove um pouco, sente certo alívio, um filete de alegria. Liga o som e o celo de um prelúdio bachiano preenche o espaço. Ouve de olhos fechados. Cada nota a alcança intimamente, está entregue, imersa naquela inebriante emoção, demora um pouco para perceber as últimas notas. Desliga o som e tira a roupa na lavanderia, não por estarem molhadas, mas por pura sensação impregnada.

Com a água quentinha escorrendo pelo corpo lembra-se de outro chuveiro, outro banheiro. Sente cada musculo relaxar. Chora um pouco e o cansaço começa a se dissipar. Deixa-se ficar até as mãos enrugarem. Com a toalha enrolada na cabeça olha-se no espelho, os seios caídos, as curvas aumentadas do corpo, a passagem da vida e sua transformação. Não fecha os olhos, se o fizesse ouviria uma voz, uma risada discreta. Não o faz. Escova os dentes e sorri para si.

Deitada na cama, a chuva é boa companhia. Pensa em esperas, em inusitadas chegadas, em desejos secretos. Aninhada em si, com as pernas dobradas e os pés ligeiramente desalinhados, está virada para a janela, a noite atravessa o tecido diáfano da cortina. Ali não há gatos nos telhados, não há silêncio na madrugada, não há sino e nem alma penada. A cidade estrangeira que zela por seu sono é segura, exata e indiferente. Em algum lugar alguém se senta sob as castanholas e enche a noite com as coisas mais variadas, as gentilezas mais inusitadas. Em algum momento há uma noite simples sob as castanholas e dois estrangeiros, donos da cidade que é deles.

Ela dorme e não sonha com nada.

Comentários

  1. Gostando de acompanhar essa "saga de pequenos-nadas". Podia ser qualquer um, e, ainda assim (por isso mesmo?) é único

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)