O museu de particularidades mínimas

 

O sol atravessa a cortina, chega à cama e ela estica a perna para que os pés alcancem o calorzinho recente. Mexe os dedos, faz ponta, meia ponta, ponta outra vez. Estica-se, felídea, todo seu corpo acorda com lentidão e vigor, mas os olhos ainda não abriram, relutam, refugam ante a claridade crescente.

Pensa no seu sonho, percebe a contração sutil do masseter, relaxa-o. Vira de bruços com um braço estendido sob o travesseiro e o outro dobrado perto do queixo, recolhe uma perna fazendo um quatro capenga, ou um retiré muito do fajuto. Abre os olhos para a parede, dando as costas ao sol que inunda o quarto através do tecido fino.

Olha o relógio, não tem mais minutos se vai tomar banho; bem, pode apressar-se no chuveiro. O que prefere: mais tempo na cama ou mais tempo na água? Levanta-se contrariada porque em breve terá menos tempo para tudo se continuar ali. Um ligeiro mal humor a faz... nada, passou rápido. Atrasa-se no banho com um pensamento antigo. Atrasa-se no café, uma falta de pressa crônica. Aceita que, embora lindas, as primeiras horas da manhã são um desafio de vitória duvidosa.

A cidade corre estrangeira pelo vidro do carro, não, não é a cidade. Talvez a estrangeira seja ela, estrangeira em si, desconhecida. Vê um casal dormindo entre cachorros, num canteiro lateral bem protegido pelos arbustos altos; pessoas correndo com fones sem fio; estudantes sonolentos, com mochilas mal ajustadas, caminhando sem convicção. Pergunta-se pelo que não vê. As cidades têm segredos, sussurrados entre os seus, muitos sabem. Lembra-se dos segredos de outras cidades, memórias desenterradas, casas para encontros, mirantes, gramados.

O desejo de mais tempo na cama, mais tempo sob o chuveiro, mais café, acomoda-se em uma manhã distante, em outra cidade, em outra vida, mas com o mesmo céu azul e a luz pacífica das primeiras horas da manhã. A vida, e sua espantosa acronia, segue irresoluta como é de sua natureza. O semáforo fecha, a vinheta do rádio a irrita, mas a sensação do corpo buscando o sol na cama permanece, faz sorrir.


Comentários

  1. Li e fui acordando, pensando e vendo (não vendo) a cidade com ela.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)