Muquifo
Dois cômodos. Três, se contarmos o banheiro. Mesa de plástico com uma inclinação no tampo, dada a qualidade questionável; duas cadeiras de plástico, dois gaveteiros plásticos; um cabideiro vermelho de gosto duvidoso; a cama de casal e o conjunto de escritório - provavelmente os únicos que, de fato, façam jus ao nome ‘móveis’ no sentido que costumamos pensar. Um punhado de ‘utilidades’ vindas da Casa – com C maiúsculo, por carrega consigo o status de ser aquela de referência, a que nomeio como tal, onde moram os meus, onde chegam as cartas, encomendas e onde recebo os amigos. Este lugar que é minúsculo em tantos sentidos, não seria difícil descrever em detalhes. O tudo daqui é bem pouco. Supre o básico, quando o básico se resume a dormir, preparar e tomar café da manhã e, vez ou outra, ser o local no qual se janta.
Batizei esse espaço de ‘meu muquifo’. Esvaziado de bens e de comodidades escassas, no muquifo, o ritmo da vida se altera. Da porta para dentro, sou quase dona do meu próprio tempo. Quase, porque não ignoro o que existe da porta para fora: os prazos, as demandas, as tarefas formais que tem hora para começar (mas, raramente tem hora para terminar). Mas, basta que eu consiga chegar com mais de duas horas para ‘hora de dormir’ para já começar a inventar. Há dias, que me deixo anestesiar, alheada na tela do celular, jogando desafios inúteis e intermináveis permeados de propagandas insuportáveis. Em outros, como hoje, abro o computador e me permito brincar de escrever. Deixo o aparente silêncio que reina aqui se encher com minhas palavras, ideias e imagens. Escrever, ler ou jogar é diferente no muquifo. Não há ninguém a quem dar satisfação. Ninguém me espera para fazer x ou y a não ser eu mesma. O muquifo é meu. Só meu. Meu abrigo de ser só. E, como é bom, estar sozinha. Ou mais precisamente, como é bom poder também estar sozinha.
Para mim, estar só é o contraponto perfeito que nutre e alegra meu reencontro com os outros. Nesta solidão limitada e com final previsível, sou recordada que não me sei, que sou já uma jovem senhora que não se enxerga como tal, me dou conta das minhas manias e descubro que facilmente me enrijeceria, caso estar só fosse a regra e não a exceção. No quarto desabitado do meu muquifo, renovo meu desejo e amor pelos outros, os vejo pintados de cores inusuais e converso com o que deles mora em mim. Assim fazendo, descanso deles e da pessoa que sou com eles sem me dar conta que estou sendo.
No meu muquifo, as coisas são do meu jeito. Ironicamente, o meu jeito não é o avesso da ordem, não destoa do que eu posso ou poderia fazer na Casa, no trabalho ou onde quer que seja. Bem ao contrário, o meu jeito é simples, esperado, banal. O que o faz especial é que ele é meu, ainda que repita um padrão comum.
Neste muquifo de porta feias e sujas, construo minha toca. Viro bicho do mato, bicho-preguiça, escritora, resolvedora eficiente de problemas de trabalho, matadora de pequenas baratas, amiga das aranhas .... viro tudo o que sou e o que eu ainda não sei que posso ser, até me tornar. De algum modo, neste espaço de dois cômodos e quase nada, tenho um casulo. Ora borboleta, ora lagarta, aqui, sou sempre eu.
Antes, um protesto justo: cadê o muquifo? Nenhuma fotinho? Aff!
ResponderExcluirAgora, tenha café para qdo eu for ao muquifo.
"o que eu ainda não sei que posso ser, até me tornar." Pegou, hein! Qta liberdade, qta possibilidade...
Hahaha... Até pensei em tirar foto do muquifo, mas a que havia imaginado não daria naquele horário. Vou tirar depois e atualizo aqui 😅
ResponderExcluirQuero a foto do muquifo também! Fiquei pensando na Carolina de Jesus e Virginia Woolf, sobre um tempo e um espaço só seu e que permite escrever. Consegui me identificar com todos esse sentimentos da descoberta de si ao construir um outro espaço para você e em você!
ResponderExcluirPrometo a foto, não dou prazo, mas prometo 😜. E, sim, Babita, é interessante demais pensar em como os espaços possibilitam ou impossibilitam nossa construção subjetiva, né?
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