Toda luz pisca
Puxou o edredom sob o queixo, era cedo e estava frio, logo o alarme soaria. De olhos fechados, não pensava exatamente em nada, dedicava-se à sensação de conforto que sentia: os pés quentes, o corpo aconchegado.
No ônibus, depois da segunda parada, conseguiu sentar-se no banco junto à janela. O sol atravessando o vidro esquentava suas mãos frias, sentiu-se bem por não precisar ceder o lugar e nem se oferecer para carregar nada de ninguém. Não que fosse insensível ou egoísta, mas queria aproveitar mais daquele prazer repentino, de só olhar a cidade passando enquanto sentia aquele calor suave.
Uma aula. Duas aulas. Trezentos e setenta e quatro aulas. Perdeu as contas por querer, chegar ao fim do dia exigia alguma estratégia. A mais recente era beber água fria no copo americano toda vez que passava ao lado do bebedor. Carregava o copo na bolsa, dentro de uma vasilha plástica fechada, não tinha muito risco de quebrar. Um luxo! Água fresca no copo de vidro e não naquelas garrafinhas com gosto e cheiro de ontem, de boca antes de escovar os dentes pela manhã. Bebia com calma, cabeça esvaziando enquanto a água passava na garganta, o barulho ficando longe, longe... Depois, tinha a respirada funda e lenta para encerrar o pequeno ritual particular. Chegava ao fim do dia.
No caminho de volta para casa pensava que era sexta e há muitas sextas não ia ao Bar da Leide, na pracinha perto do prédio, só não via da janela porque seu apartamento era virado para o outro lado. “Seu” era modo de dizer, “alugado para sempre”, segundo seu Marcolino, o proprietário muito simples e discreto. Ele devia ser dono do prédio inteiro, vivia com um gato no sobrado em frente ao predinho de três andares, mais o térreo, sem elevador e com uma escada bonita: guarda-corpo e corrimão de ferro pintado de preto brilhante, piso de cimento polido com pedrinhas amareladas e xaxins com renda portuguesa num suporte de ferro também preto entre os andares. Sem falar na luz natural que entrava pelas janelas redondas ao longo de toda escadaria, era especialmente bonito no inverno.
Enquanto deixava suas coisas e pegava um casaco mais quente para descer e tomar uma cerveja na Leide, lembrou-se do amigo com quem trocava beijos e pensamentos absurdos há uns anos, especialmente de quando viram a cidade iluminada do alto. Era uma noite como aquela, talvez um pouco menos fria, foi um amigo comum que contou desse lugar, uma espécie de mirante, um morro num bairro afastado. Ficou hipnotizada pelas luzes, todos aqueles pontinhos dançando, amarelos, brancos, vermelhos se movimentado, um corpo vivo, lindo. “Parece que está piscando.” “Sim. Toda luz pisca.” Sorriu. Foi uma noite boa. Depois o amigo foi embora, de vez em quando se falam, coisas banais, é meio estranho às vezes.
“Tava sumida!” “É o frio, vai sabotando a coragem...” Abraçaram-se, Zuleide cheirava a alecrim e fritura, tinha um sorriso muito luminoso e era brava como o capeta com gente folgada. “Viu quem tá aí?” Olhou de lado e rapidamente identificou a mesa com uns conhecidos, entre eles o moço com quem tinha ficado algumas vezes. Cumprimentou o pessoal, especialmente os músicos que puxavam um samba na mesa da calçada, coisa simples, de improviso, se juntavam ali de vez em quando para espairecer e todos aproveitavam, bebiam de graça só com a generosidade alheia, cada hora era um que paga uma cerveja, todos ganhavam.
Tomou a primeira no balcão com Leide, enquanto comia um bolinho de carne recheado com queijo que era a especialidade da casa. Queria estar mais feliz, mas nos últimos tempos andava cansada e ser feliz exige entrega, estava difícil. Não que estivesse triste, era outra coisa. O moço chegou e pediu uma para tomarem juntos. Falaram um pouco, riram, parecia que a noite ia virar. Não ser um compromisso era bom, era leve e possível. Era o que podia.
Depois sentaram com os conhecidos, cantaram, brindaram, forçou-se a certa alegria. A luz do bar deu uma piscada, pensou no amigo, “toda luz pisca”. Depois foi a vez da luz da rua, Leide já estava com as velas prontas. Trocou uns beijos com o moço, mas não quis ir embora com ele. Despediu-se de Leide dois bolinhos e três cervejas depois, passava pouco das dez. “Você precisa vir mais, chegou meio apagadinha, gata. Tem que voltar a brilhar!” “Só cansaço, gata. Nada demais”. Seu cansaço oscilante, sua alegria vacilante, sua luz piscante... Toda luz pisca.
Subiu a escada bonita. Tomou um banho quente e escovou os dentes no chuveiro. Colocou um pijama confortável e deitou-se na cama aconchegante. Puxou o edredom sob o queixo, não era tão tarde. Apagou o abajur e de olhos fechados no escuro voltou a ver a cidade como um corpo luminoso dançando. Sim, toda luz pisca.
Tia, amei. Uma coisa despretensiosa que, por isso mesmo, brilha. Quem vê de fora e do alto, se encanta com as luzes porque piscam...
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