O bem-te-vi na cabeça de Jesus

Quase toda semana, me encontro defronte do cemitério. O cemitério mais antigo da cidade. Situado em uma rua que tem uma descida que dá no mar. Fico sentada, aguardando minha carona para pegar a estrada. Já virou brincadeira... “espero vocês no cemitério” ou, parafraseando um curta metragem, “eu que lá estarei, por vocês esperarei”. Não entro no cemitério (embora sempre fique tentada a ir dar uma volta!). Fico em uma barraquinha que vende café e algumas comidas. O dono já me conhece. Oferece a banqueta para que eu sente, mesmo que eu raramente compre mais do que uma água. Mais de uma vez, meus caroneiros atrasaram e, considerando que eu gosto de chegar mais cedo, já fiquei ali por quase uma hora (quiçá, mais!). Usei o tempo extra para observar o movimento. O dono da barraquinha me explicou, em meio as conversas, que lá era ‘seguro’ porque a ‘lei’ da facção impunha um código de não assalto na região.

Uns dias atrás, sentada na banqueta enquanto aguardava a chegada dos amigos, reparei, como gosto de fazer, nas esculturas e construções que superam em altura o muro do São João Batista. Achei curioso e simbólico um bem-te-vi bem pousado na cabeça de Jesus. Pensei em tirar uma foto, mas o bicho se foi antes que eu conseguisse, com minha estrondosa inabilidade, achar um ângulo decente.

Não lembro exatamente o que me ocorreu quando vi o bem-te-vi ali, mas achei que valia uma poesia. Me parece, agora, que ali já era a poesia. Um bem-te-vi com seu jeito mandão e sua ousadia briguenta parado acima do sagrado. Jesus, se minhas suspeitas tiverem algum valor, pouco ligava. Na verdade, achava boa a visita. O pássaro parecia pouco interessado na simpatia da figura bíblica, apenas aproveitava a firmeza da pedra para olhar os arredores e descansar as asas.

Queria recordar as ideias poéticas que tive diante daquela cena, mas sei que nunca mais as encontrarei. Ou, se elas voltarem, que não saberei que são aquelas, o que dá no mesmo de não lembrá-las... Paciência! Fica em mim, o inesperado daquela visão. O bem-te-vi, na história natural das coisas, mais antigo do que Jesus, mostrando que o que se toma por sagrado, pode facilmente se somente um monte de pedra com uma privilegiada vista para o mar.

 

Comentários

  1. Anônimo13/9/24

    Toda a poesia está aí, nos olhos q veem o mar, o pássaro e, mais ainda, o movimento incessante da vida. Posso te ver aí, tia, nesse lugar que quase nem é.

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