Armistício
Muito sono para pouca noite. Música no carro, a vida vibra. Ônibus, motos, bicicletas, gente correndo, caminhando, cachorros se espreguiçando. Um semáforo, dois, muitos. Adolescentes indo para escola, crianças de mochila e lancheira, de mãos dadas, olhando para o céu. Pula música, repete música, suspira. A vida agita-se.
Café coado, farto. A adaptação do tempo necessário. O ritual apreciado, mantido nos detalhes. Testa a temperatura da caneca, o primeiro gole é um gozo inenarrável. Tudo acorda, tudo desperta, tudo olha com generosidade. Lê as notícias, quase sempre parecem repetidas, um, dois, três jornais. Busca as tirinhas virtuais, o jogo de palavras, as novidades dos conhecidos. O sol vai perdendo a timidez, espalha-se à vontade. Na tela, o Grimaldi faz um cotidiano mais belo e com consciência social, “chora fotoxopi”, “e aí, o que você fez pela sua quebrada hoje?”, “viu o cara pintando, vai lá, leva um lanche pra ele, compra umas tintas”. Vê as meninas da Morgana crescerem. Ri das piadas bobas e das bem elaboradas. Pasma com Laerte e sua sagacidade. Às vezes não são nem oito horas, às vezes passa das nove. O sono insinua-se na lentidão. O prazer de olhar a manhã com calma traz leveza.
Muitas horas. Muitas ideias. Muitos pensamentos. Ouve, ouve, ouve. Não divaga, ouve com a exigida atenção, que flutua e não se ausenta. Lê, suspira, faz contas. Sorri lembrando alguma coisa, enquanto o sol caminha no dia, muda a posição da sombra. Molha as plantas, que estão lindas. Passa um pouco de café. Faz chá. Fica por muito tempo olhando o movimento da rua, ouvindo o guardador de carros, pensando nos trechos de poema que gosta. “Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem.”
A melhor hora do dia, suspira. As luzes se acendem. Controla seu pequeno incêndio íntimo. Está cansada. Alguma melodia fica, como um cheiro bom, sim, “música é perfume”. Vê a foto que não fará porque a câmera está ruim. Pisca e a noite desce. A noite com sua vida própria, com seus habitantes, seus entremeios. “- sei que dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ mesmo que o pão seja caro/ e a liberdade pequena.” Apazígua-se com sua inquietação. A noite convoca. Tem ganas de ir. Respira a inebriante sensação de saber-se viva. A água do chuveiro caindo, caindo. Há paz. Não, há um armistício. Não se ilude. Aproveita a trégua e, às vezes, dorme um sono sem sonhos.
Gostei muito, tia. A gente mira na paz e alcança o armistício, mas tá valendo...
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